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sexta-feira, 18 de maio de 2012

Millennium Actress (Sennen joyu) - 2001


Millennium Actress (Sennen Joyû) – 2001, Cor, 87 minutos.
Origem: Japão.
Gênero: Animação, drama, romance.
Direção: Satoshi Kon.
Roteiro:  Satoshi Kon, Sadayuki Murai.
Fotografia: Hisao Shirai.
Trilha sonora: Susumu Hirasawa.
Lançamento no Brasil: (ainda não lançado).















Sobre o diretor

Satoshi Kon foi um diretor muito ousado. Nascido em 1963 e falecido em 2007 devido a um câncer pancreático, foi assistente e discípulo de Katsushiro Otomo, mente por trás da criação de Akira, tanto o mangá quanto o anime que se tornou um clássico mundial. A expertise adquirida através do contato com o mestre foi empregada, entretanto, para dar forma a um estilo completamente seu.

         Escrevia os roteiros dos filmes que dirigia, sempre utilizando uma abordagem de forte cunho psicológico, aliada a uma estética surrealista, quase onírica, compondo uma narrativa em que realidade e fantasia pareciam se confundir. Uma tese permeia todas as suas obras: Estas duas esferas da existência, fantasia e realidade, seriam assim tão diferentes? Se o que julgamos enquanto fictício é capaz de gerar uma experiência possível de ser sentida, compartilhada, vivenciada, ela não se materializa e passa então a ser parte do real?


Satoshi Kon.

Para defender tal premissa, Kon criou roteiros muito complexos, que em mãos incapazes poderiam resultar em catástrofe. Mas demonstrando forte domínio da técnica e uma sensibilidade incomum, ele conduziu com maestria suas audaciosas obras, conseguindo um grau impressionante de imersão.

Em Perfect Blue (1997), por exemplo, acompanhamos o drama psicológico da cantora Mima, que encerra precocemente sua carreira na música pop japonesa para tentar a de atriz, mas quando as pressões da nova profissão entram em choque com sua antiga personalidade pública acaba entrando em colapso. O contexto sempre é muito rico: no Japão, como aqui no ocidente, as artistas pop têm de criar uma personagem para o palco. As garotas, geralmente bem jovens, devem personificar o tipo angelical, a fim de  se encaixar com o modelo de pureza idealizado pelo público. Mima está envelhecendo, e busca no cinema maior longevidade no show business. Mas para o antigo público de Mima as atrizes não são bem vistas: são mulheres subversivas, não representam, e sim vivem o que fazem no estúdio, são sujas. A violência da mudança de contexto leva Mima a enxergar a si mesma enquanto duas: a atriz e a personagem angelical a lhe julgar, perseguindo-a nos espelhos, nos vagões do metrô. À medida em que Mima vai perdendo sua referência de realidade, somos induzidos a compartilhar sua paranóia. Qualquer semelhança com Cisne Negro de Darren Aronofsky não é mera coincidência.




Já em Páprika (2006), cientistas desenvolvem uma máquina capaz de tornar os sonhos visualizáveis, graváveis em vídeo e compartilháveis, permitindo então o estudo de doenças psicológicas através da viagem ao inconsciente do paciente. Contudo um dos aparelhos é roubado e usado por terroristas para atacar os cientistas envolvidos na criação da tecnologia, alterando sua percepção de realidade e os prendendo num pesadelo compartilhado. Para descobrir quem está por trás disso e suas intenções, uma doutora desenvolve um alter-ego chamado Páprika, com liberdade irrestrita para passear pelos sonhos. A metáfora aqui é com a internet, um mundo onde podemos ser qualquer pessoa, um espaço que outorgamos o adjetivo de virtual, mas para nossa mente funciona como uma extensão do real. O empréstimo da ideia pelo cinema do ocidente foi mais brando: em A origem, de Christopher Nolan, encontramos a premissa de uma máquina para compartilhamentos de sonhos, mas a filosofia desenvolvida é totalmente diversa.


A doutora Atsuko, à direita, e seu alter-ego, Páprika.

Depois dessa introdução, podemos falar da que considero a obra mais emblemática e poderosa de Kon: Millennium Actress (2001) conta a história de Chiyoko, uma atriz que abandona a carreira no auge do sucesso, mas decide contar sua vida e os motivos de sua reclusão antes da morte. Voltando ao passado de Chiyoko na intenção de entender o mistério, somos lançados numa narrativa que mescla memória, fantasia e realidade com uma profunda reflexão sobre a natureza do cinema em si.

            Resenha

O secular estúdio cinematográfico Ginei foi demolido. Na tentativa de salvar parte da história do cinema japonês o produtor Genya e seu cameraman resgatam tudo o que podem para produzir um documentário. Porém, falta cobrir a maior lacuna desta história, o paradeiro de Chiyoko - estrela de maior sucesso do Ginei - distante das câmeras há mais de trinta anos. Descoberto o endereço, ambos sobem uma íngreme ladeira em direção à residência da atriz, quando o cético cameraman exclama que ela já deve estar velha e gagá. Recebe como resposta uma bolsada na cara: "- Ela nunca envelhecerá!", diz Genya, fã incondicional de Chiyoko.

Lá chegando, para a surpresa de Genya, encontram uma velha e adoecida Chiyoko. Como presente para a atriz, o produtor lhe entrega uma pequena chave, algo do seu passado que a deixa muito pensativa. Ao perguntar o que a chave abre, recebe como resposta: “- Essa é a chave para a coisa mais importante que existe”. Câmera em punho, eles filmam o depoimento da atriz, que resolve abrir sua história e contar o verdadeiro motivo para seu envolvimento com o cinema.




Existe um bom trabalho de contextualização histórica, situando o nascimento de Chiyoko em 1923, ano em que um grande terremoto arrasou metade do Japão. A partir dessa década, o país se envolve crescentemente nos acontecimentos que culminarão na Segunda Guerra Mundial, e o filme passeia pelos efeitos do conflito como também pelas repercussões do pós-guerra no oriente. A abordagem inicial é de uma genialidade fantástica.

                Enquanto a atriz conta sua infância, visualizamos fotografias de sua época escolar. Nelas, várias crianças sorridentes seguram pequenas bandeirolas do Japão, enquanto Chiyoko ostenta uma expressão de incômodo. Ao contrário de todos os elementos estáticos da fotografia, a pequena estudante se movimenta entre os fantasmas de seu passado, corre entre eles.




                A fotografia, como sabemos, foi a ancestral do cinema e roubou da pintura o posto de melhor forma de representar o real. Contudo, a natureza da fotografia impunha um limite de envolvimento entre o observador e a realidade retratada: a imagem estática aparece como o vestígio de um acontecimento já ocorrido, um momento no espaço-tempo do qual ele não participa, gerando uma sensação de exterioridade. O cinema se sobrepôs à fotografia com uma melhoria colossal nesse quesito, já que com o movimento, a situação retratada aparece como um acontecimento em curso, sugestionando nossa mente a aceitar a realidade do fato, revestindo a fantasia do que é mostrado com a substância dos nossos anseios, nossas experiências.

Genya e seu cameraman não conseguem acompanhar
o ritmo da jovem Chiyoko.

Enquanto a pequena Chiyoko passeia pelas ruas de sua infância, nos deparamos com Ganey e seu cameraman, materializados na reconstituição da memória da atriz, como figurantes curiosos. Kon realiza outra alegoria, desta vez sobre a relação de envolvimento dos espectadores com a história que lhes é contada, mostrando como somos absorvidos e impelidos a criticar, analisar o que nos é exposto, influenciando e nos deixando influenciar pela obra cinematográfica.

Mas voltemos à história. Adolescente, Chiyoko conhece um fugitivo da polícia, e por ele se apaixona perdidamente. Como prova de amor, dele recebe uma chave, um objeto para os unir após sua partida e que deve ser devolvido, numa promessa de reencontro. Enquanto esse amor amadurecia em seu coração, recebe a proposta de um diretor para estrelar em um de seus filmes. Coincidentemente, o set de filmagens ficava localizado próximo do local para onde o fugitivo teria debandado. E assim, ela decide ir na esperança de reencontrar seu amado.




Acontece que os papéis oferecidos para Chiyoko apresentam uma semelhança intrigante com sua história: sempre mulheres que partem em busca de seu amor, porém sem nunca encontrá-lo. Tal semelhança permite que ela realize atuações extraordinárias, tornando a idéia do reencontro dos amantes, para o diretor,  algo absolutamente desinteressante. 

As semelhanças entre a busca da atriz e os roteiros se intensificam, reeditando fragmentos de seu passado em cenas situadas, por exemplo, no Japão Medieval, como uma princesa em busca de seu amado, fugitivo do imperador, ou como uma gueixa apaixonada, mas proibida de viver esse sentimento devido à sua condição. A edição de Satoshi Terauchi funciona brilhamentemente no sentido de costurar com coesão a trama dos filmes à realidade de Chiyoko, ajudando Kon a alcançar o seu objetivo: assim como a atriz, perdemos por alguns momentos a percepção do que é verdade e o que é ficção em sua vida. Ficamos totalmente imersos em sua experiência. A trilha sonora de Susumu Hirasawa é igualmente brilhante, e cumpre um papel fundamental para a construção da atmosfera do filme, que varia entre vibrantes cenas de ação, momentos de melancolia e confusão vividos pela protagonista. 

Chiyoko vivencia em toda sua filmografia um milênio da história japonesa esperando que sua imagem pudesse dar uma indicação de como encontrá-la. Ela somente abandona a carreira ao perceber que o tempo passou, e a feição jovem pela qual o fugitivo se apaixonara não mais existe




Genya, o produtor, descobre que o fugitivo faleceu a muito tempo, não resistindo ao rigoroso interrogatório imposto pela polícia à época. Quando decide solucionar o mistério, o estado de saúde da atriz se agrava. Consegue chegar a tempo de ouvir suas últimas palavras: “A parte que eu realmente amei foi procurá-lo.”.

Satoshi Kon encerra sua obra com uma reflexão importante sobre o fascínio que o cinema exerce sobre nós: ao final, a trajetória de uma pessoa que devotou sua vida em busca de um fantasma não nos parece nem um pouco patética. Assim como a atriz, o espectador não teria acompanhado ao longo de quase duas horas de projeção uma ilusão? O diretor, então, se profissionaliza em forjar o convencimento a partir da ficção. O que saímos ganhando é algo que não se pode precisar ao certo o grau de realidade, mas é um laço poderoso a nos unir em torno da paixão pelo cinema: o compartilhamento de nossas experiências.