Pária (Pariah) – 2011, Cor, 103 minutos.
A melhor definição pra pária é “aquele que não cumpre seu papel social.”. Ao não assumir a identidade que o grupo social determina, ou ao não se encaixar nos requisitos predeterminados de sociabilidade, o indivíduo passa por um processo de exclusão, voluntário ou não. Na Índia, por exemplo, temos os dálits, ou intocáveis. Apesar de que na atualidade, a mobilidade social dos hindus esteja mais flexível, ainda são os referenciais mais lembrados. E apesar deste pequeno prólogo, não é sobre os dálits hindus que a diretora e roteirista Dee Rees quer falar em seu primeiro filme. Ao retratar o processo de amadurecimento de uma adolescente gay que está desvendando sua identidade, Rees nos mostra como em nossa sociedade criamos nossas párias. Processo aqui é, de fato, a palavra chave.
Na escola, Alike vive frequentemente isolada, interagindo
apenas com sua professora de literatura, para a qual lê os textos que escreve.
Numa cena de particular simbolismo, ela declama um poema descrevendo a
metamorfose de uma lagarta, poema considerado pela professora como apenas OK.
Claramente frustrada, Lee escuta que falta profundidade, algo que confira ao
seu texto uma real percepção do processo para além da aparência. Neste
ambiente, o preconceito está igualmente presente, porém os comentários que mais
afetam a protagonista vêm de outras garotas, que acham ela atraente, mas
incompleta. "Ao menos se ela fosse mais dura", uma comenta. Mais do
que o fato de ser lésbica, incomoda a indefinição derivada de seu processo de
crescimento: a incapacidade de oferecer a segurança de uma identidade fixa,
seja de "cara", seja de "dama", insegurança aumentada pela
inexperiência no sexo, uma vez que Lee ainda é virgem.
A definição acontece, entretanto, num momento ainda mais
crítico. Numa briga entre seus pais, promovida pela desconfiança da mãe em
relação aos telefonemas do marido, a diretora desacraliza de vez o paraíso heterossexual
que permeava o hipócrita discurso da mãe de Lee, para em seguida demonstrar
sobre quais bases ele é sacralizado. Quando Lee se põe entre os dois para
afastá-los, sua mãe acusa o pai de responsável pelo comportamento "desviante" da filha, obrigando-a a confessar sua sexualidade. A briga se desfaz, ganha um
novo enfoque. Ao confessar, ela une os pais sob o signo do desconsolo ao tempo
em que ela mesma se torna o verdadeiro problema. Após ser agredida fisicamente
pela mãe, deixa a casa.
Ao final, Lee declama um novo poema, descrevendo o
amadurecimento por outra metáfora, como um ser que apenas se quebra, não para
revelar outro ser dentro de si, e sim representando, pelos próprios cacos, os
machucados, as cicatrizes, da onde advém a liberdade. É com essa intimidade
toda que Rees faz seu debut no cinema, com um roteiro sólido, uma história
forte, um olhar antropológico apurado e uma narrativa inteligente o bastante
para tornar este um dos grandes feitos de 2011.
Direção: Dee Rees.
Roteiro: Dee Rees.
Cinematografia:
Bradford Young.
Elenco original:
Adepero Oduye, Kim Wayans e Aasha Davis .
A melhor definição pra pária é “aquele que não cumpre seu papel social.”. Ao não assumir a identidade que o grupo social determina, ou ao não se encaixar nos requisitos predeterminados de sociabilidade, o indivíduo passa por um processo de exclusão, voluntário ou não. Na Índia, por exemplo, temos os dálits, ou intocáveis. Apesar de que na atualidade, a mobilidade social dos hindus esteja mais flexível, ainda são os referenciais mais lembrados. E apesar deste pequeno prólogo, não é sobre os dálits hindus que a diretora e roteirista Dee Rees quer falar em seu primeiro filme. Ao retratar o processo de amadurecimento de uma adolescente gay que está desvendando sua identidade, Rees nos mostra como em nossa sociedade criamos nossas párias. Processo aqui é, de fato, a palavra chave.
Somos apresentados
à personagem principal, Alike (ou Lee), durante uma noitada numa boate de
streaper para lésbicas com sua amiga Laura. Nos trajes “de garoto” e na sua
postura, Lee afirma sua sexualidade, embora sinta timidez em se juntar às
amigas no assédio à pole dancer, ou mesmo no flerte com outras garotas na pista
de dança. É como se ela tateasse os modos de vida de uma identidade que a
define, mas que não lhe é totalmente conhecida. Lee, como dito, é uma
adolescente.
No seu caminho para casa, percebemos suas peculiaridades.
Lee insiste que sua amiga não lhe acompanhe até sua casa, e com certa violência
a induz a descer na parada próxima. Afundando no banco, ela começa a retirar o
boné, o casaco, colocar os brincos, mostrar o cabelo. Com relutância e
embaraço, ela se “desmonta” de Lee e volta a ser Alike. Ao atentar para esses
detalhes, percebemos como a observação intimista de Rees do cotidiano de Alike é fenomental. Filha mais velha de uma família tradicional, negra, ela sofre por
não cumprir bem o papel social que lhe é designado.
Num momento à mesa, enquanto sua irmã mais nova conversa
descontraidamente sobre fazer sexo com rapazes na festa do baile, Alike
desconversa quando sua mãe, religiosa, prefere inquirir sobre sua falta de
interesse em ir. Encontra uma fuga para esta conversa em seu pai, sempre
distante, mas que tende a concordar mais com a filha que com a esposa. Apesar
de chamá-la de “minha garota”, o relacionamento entre os dois é mais parecido
com o de pai e filho. O relacionamento conturbado entre mãe e filha advém
justamente dessa falta de entendimento e identificação entre ambas, agravada
regularmente pelas "tentativas de aproximação" da superprotetora mãe,
na forma de presentes como vestidos. Testes, na verdade, esse pequenos subornos
são feitos com intenção de sondar e converter sua filha, num caminho totalmente
contrário à uma tentativa de entendimento. Ademais, a heteronormatividade de
sua família não lhe parece de nenhuma forma atraente, uma vez que seus pais
vivem um casamento de aparência, e telefonemas recebidos pelo seu pai durante a
madrugada parecem lhe mostrar o real motivo para o distanciamento do mesmo.
Na busca por definição, Alike se arvora na amizade com
Laura, mais velha, lésbica assumida, independente, embora de baixa instrução.
Uma amizade guiada tanto pela busca por experiência quanto pela identificação de
Laura. Num dos muitos movimentos inteligentes do roteiro, Rees separa as amigas
para introduzir um novo viés para sua história de amadurecimento adolescente:
Lee é obrigada a conviver, graças à mãe, com uma garota lésbica, só que ainda
no armário. A aproximação das duas, no entanto, aumenta a crise de Lee: o que
parecia um promissor início de namoro apenas trás decepção. No sexo ela
demonstra sua inexperiência, frustrando sua amante, que a faz compreender a
frivolidade da relação que tiveram, exigindo segredo sobre o acontecido.
Rees desempenha um trabalho exemplar também em extrair de
seus atores boas atuações, sobretudo de Adepero Oduye, que interpreta Alike.
Além de ser extremamente convincente em cada papel social que representa, o seu
trabalho com o olhar é notável, conseguindo demonstrar esperança, força, no seu
choro contido, e completude, quando finalmente compreende o funcionamento da
sociedade e encontra nela seu lugar. A trilha sonora é eficaz, composta
basicamente de música underground, e a fotografia funciona, apesar da paleta
digna de filtro do instagram, ousando em alguns momentos cruciais. A explosão
de branco nas cenas finais é um exemplo interessante dessa ousadia, embora não
realmente excepcional.
Dee Rees, diretora e roteirista |
Estou quebrada. Estou livre.